terça-feira, 29 de maio de 2012

Planos Divinos.


E se eu pedisse a Deus.
Se dissesse que agora eu quero ser uma
                                                 uma flor.
A flor que é macia,delicada e colorida.
E os espinhos que possui, só machucam as mãos sem costume, sem jeito.
Espinhos de flor não ferem mãos feitas de ternura.


E se eu pedisse a Deus.
Se dissesse que agora eu prefiro ser
                                       uma estrela.
Estrela que aos olhos dos meros mortais,
Irradia e aquece mesmo morta.

Mas se Deus me transformasse
                                      num diamante.
E fosse caro,belo,cortante.


                                        Seria eu enfim amada?

"Não" .
Deus disse que serei somente
                                       o que eu sou.

Sei que há flores, e estrelas, e diamantes
                                        a sua espera.
E sim, eu que me aceite assim
                                        como Deus quis.


Mas... espere .


No pouco que me resta,
Deus,por piedade
Me deixou as palavras
e um coração (que há de agir primeiro em defesa do amor próprio)

Pra te dizer que sim
Não me comparo às flores, estrelas e diamantes.
Entretanto,deles todos se vêem aos montes.

E igual a mim....
           Só eu mesma.

O encontro ao óbvio
será mais fácil.
O difícil será lidar
com o que se perdeu do único.


Mas Deus sabe o que faz.


E olhando daqui realmente eu vejo
O quanto você se parece com todas essas coisas que eu desejei ser
-um dia.

E eu fico.
Me aceitando assim como Deus quis
(degustando quem sabe do prazer de não me misturar)



Porque Deus sabe o que faz.

Eu vi o que ele fez.

-Foi só você quem não percebeu.



O homem da cabeça de papelão



João do Rio

No País que chamavam de Sol, apesar de chover, às vezes, semanas inteiras, vivia um homem de nome Antenor. Não era príncipe. Nem deputado. Nem rico. Nem jornalista. Absolutamente sem importância social.

O País do Sol, como em geral todos os países lendários, era o mais comum, o menos surpreendente em idéias e práticas. Os habitantes afluíam todos para a capital, composta de praças, ruas, jardins e avenidas, e tomavam todos os lugares e todas as possibilidades da vida dos que, por desventura, eram da capital. De modo que estes eram mendigos e parasitas, únicos meios de vida sem concorrência, isso mesmo com muitas restrições quanto ao parasitismo. Os prédios da capital, no centro elevavam aos ares alguns andares e a fortuna dos proprietários, nos subúrbios não passavam de um andar sem que por isso não enriquecessem os proprietários também. Havia milhares de automóveis à disparada pelas artérias matando gente para matar o tempo,cabarets fatigados, jornais, tramways, partidos nacionalistas, ausência de conservadores, a Bolsa, o Governo, a Moda, e um aborrecimento integral. Enfim tudo quanto a cidade de fantasia pode almejar para ser igual a uma grande cidade com pretensões da América. E o povo que a habitava julgava-se, além de inteligente, possuidor de imenso bom senso. Bom senso! Se não fosse a capital do País do Sol, a cidade seria a capital do Bom Senso!

Precisamente por isso, Antenor, apesar de não ter importância alguma, era exceção mal vista. Esse rapaz, filho de boa família (tão boa que até tinha sentimentos), agira sempre em desacordo com a norma dos seus concidadãos.

Desde menino, a sua respeitável progenitora descobriu-lhe um defeito horrível: Antenor só dizia a verdade. Não a sua verdade, a verdade útil, mas a verdade verdadeira. Alarmada, a digna senhora pensou em tomar providências. Foi-lhe impossível. Antenor era diverso no modo de comer, na maneira de vestir, no jeito de andar, na expressão com que se dirigia aos outros. Enquanto usara calções, os amigos da família consideravam-no umenfant terrible, porque no País do Sol todos falavam francês com convicção, mesmo falando mal. Rapaz, entretanto, Antenor tornou-se alarmante. Entre outras coisas, Antenor pensava livremente por conta própria. Assim, a família via chegar Antenor como a própria revolução; os mestres indignavam-se porque ele aprendia ao contrario do que ensinavam; os amigos odiavam-no; os transeuntes, vendo-o passar, sorriam.

Uma só coisa descobriu a mãe de Antenor para não ser forçada a mandá-lo embora: Antenor nada do que fazia, fazia por mal. Ao contrário. Era escandalosamente, incompreensivelmente bom. Aliás, só para ela, para os olhos maternos. Porque quando Antenor resolveu arranjar trabalho para os mendigos e corria a bengala os parasitas na rua, ficou provado que Antenor era apenas doido furioso. Não só para as vítimas da sua bondade como para a esclarecida inteligência dos delegados de polícia a quem teve de explicar a sua caridade.

Com o fim de convencer Antenor de que devia seguir os tramitas legais de um jovem solar, isto é: ser bacharel e depois empregado público nacionalista, deixando à atividade da canalha estrangeira o resto, os interesses congregados da família em nome dos princípios organizaram vários meetingscomo aqueles que se fazem na inexistente democracia americana para provar que a chave abre portas e a faca serve para cortar o que é nosso para nós e o que é dos outros também para nós. Antenor, diante da evidência, negou-se.

— Ouça! bradava o tio. Bacharel é o princípio de tudo. Não estude. Pouco importa! Mas seja bacharel! Bacharel você tem tudo nas mãos. Ao lado de um político-chefe, sabendo lisonjear, é a ascensão: deputado, ministro.

— Mas não quero ser nada disso.

— Então quer ser vagabundo?

— Quero trabalhar.

— Vem dar na mesma coisa. Vagabundo é um sujeito a quem faltam três coisas: dinheiro, prestígio e posição. Desde que você não as tem, mesmo trabalhando — é vagabundo.

— Eu não acho.

— É pior. É um tipo sem bom senso. É bolchevique. Depois, trabalhar para os outros é uma ilusão. Você está inteiramente doido.

Antenor foi trabalhar, entretanto. E teve uma grande dificuldade para trabalhar. Pode-se dizer que a originalidade da sua vida era trabalhar para trabalhar. Acedendo ao pedido da respeitável senhora que era mãe de Antenor, Antenor passeou a sua má cabeça por várias casas de comércio, várias empresas industriais. Ao cabo de um ano, dois meses, estava na rua. Por que mandavam embora Antenor? Ele não tinha exigências, era honesto como a água, trabalhador, sincero, verdadeiro, cheio de idéias. Até alegre — qualidade raríssima no país onde o sol, a cerveja e a inveja faziam batalhões de biliosos tristes. Mas companheiros e patrões prevenidos, se a princípio declinavam hostilidades, dentro em pouco não o aturavam. Quando um companheiro não atura o outro, intriga-o. Quando um patrão não atura o empregado, despede-o. É a norma do País do Sol. Com Antenor depois de despedido, companheiros e patrões ainda por cima tomavam-lhe birra. Por que? É tão difícil saber a verdadeira razão por que um homem não suporta outro homem!

Um dos seus ex-companheiros explicou certa vez:

— É doido. Tem a mania de fazer mais que os outros. Estraga a norma do serviço e acaba não sendo tolerado. Mau companheiro. E depois com ares...

O patrão do último estabelecimento de que saíra o rapaz respondeu à mãe de Antenor:

— A perigosa mania de seu filho é por em prática idéias que julga próprias.

— Prejudicou-lhe, Sr. Praxedes?

Não. Mas podia prejudicar. Sempre altera o bom senso. Depois, mesmo que seu filho fosse águia, quem manda na minha casa sou eu.

No País do Sol o comércio ë uma maçonaria. Antenor, com fama de perigoso, insuportável, desobediente, não pôde em breve obter emprego algum. Os patrões que mais tinham lucrado com as suas idéias eram os que mais falavam. Os companheiros que mais o haviam aproveitado tinham-lhe raiva. E se Antenor sentia a triste experiência do erro econômico no trabalho sem a norma, a praxe, no convívio social compreendia o desastre da verdade. Não o toleravam. Era-lhe impossível ter amigos, por muito tempo, porque esses só o eram enquanto. não o tinham explorado.

Antenor ria. Antenor tinha saúde. Todas aquelas desditas eram para ele brincadeira. Estava convencido de estar com a razão, de vencer. Mas, a razão sua, sem interesse chocava-se à razão dos outros ou com interesses ou presa à sugestão dos alheios. Ele via os erros, as hipocrisias, as vaidades, e dizia o que via. Ele ia fazer o bem, mas mostrava o que ia fazer. Como tolerar tal miserável? Antenor tentou tudo, juvenilmente, na cidade. A digníssima sua progenitora desculpava-o ainda.

— É doido, mas bom.

Os parentes, porém, não o cumprimentavam mais. Antenor exercera o comércio, a indústria, o professorado, o proletariado. Ensinara geografia num colégio, de onde foi expulso pelo diretor; estivera numa fábrica de tecidos, forçado a retirar-se pelos operários e pelos patrões; oscilara entre revisor de jornal e condutor de bonde. Em todas as profissões vira os círculos estreitos das classes, a defesa hostil dos outros homens, o ódio com que o repeliam, porque ele pensava, sentia, dizia outra coisa diversa.

— Mas, Deus, eu sou honesto, bom, inteligente, incapaz de fazer mal...

— É da tua má cabeça, meu filho.

— Qual?

— A tua cabeça não regula.

— Quem sabe?

Antenor começava a pensar na sua má cabeça, quando o seu coração apaixonou-se. Era uma rapariga chamada Maria Antônia, filha da nova lavadeira de sua mãe. Antenor achava perfeitamente justo casar com a Maria Antônia. Todos viram nisso mais uma prova do desarranjo cerebral de Antenor. Apenas, com pasmo geral, a resposta de Maria Antônia foi condicional.

— Só caso se o senhor tomar juízo.

— Mas que chama você juízo?

— Ser como os mais.

— Então você gosta de mim?

— E por isso é que só caso depois.

Como tomar juízo? Como regular a cabeça? O amor leva aos maiores desatinos. Antenor pensava em arranjar a má cabeça, estava convencido.

Nessas disposições, Antenor caminhava por uma rua no centro da cidade, quando os seus olhos descobriram a tabuleta de uma "relojoaria e outros maquinismos delicados de precisão". Achou graça e entrou. Um cavalheiro grave veio servi-lo.

— Traz algum relógio?

— Trago a minha cabeça.

— Ah! Desarranjada?

— Dizem-no, pelo menos.

— Em todo o caso, há tempo?

— Desde que nasci.

— Talvez imprevisão na montagem das peças. Não lhe posso dizer nada sem observação de trinta dias e a desmontagem geral. As cabeças como os relógios para regular bem...

Antenor atalhou:

— E o senhor fica com a minha cabeça?

— Se a deixar.

— Pois aqui a tem. Conserte-a. O diabo é que eu não posso andar sem cabeça...

— Claro. Mas, enquanto a arranjo, empresto-lhe uma de papelão.

— Regula?

— É de papelão! explicou o honesto negociante. Antenor recebeu o número de sua cabeça, enfiou a de papelão, e saiu para a rua.

Dois meses depois, Antenor tinha uma porção de amigos, jogava o pôquer com o Ministro da Agricultura, ganhava uma pequena fortuna vendendo feijão bichado para os exércitos aliados. A respeitável mãe de Antenor via-o mentir, fazer mal, trapacear e ostentar tudo o que não era. Os parentes, porem, estimavam-no, e os companheiros tinham garbo em recordar o tempo em que Antenor era maluco.

Antenor não pensava. Antenor agia como os outros. Queria ganhar. Explorava, adulava, falsificava. Maria Antônia tremia de contentamento vendo Antenor com juízo. Mas Antenor, logicamente, desprezou-a propondo um concubinato que o não desmoralizasse a ele. Outras Marias ricas, de posição, eram de opinião da primeira Maria. Ele só tinha de escolher. No centro operário, a sua fama crescia, querido dos patrões burgueses e dos operários irmãos dos spartakistas da Alemanha. Foi eleito deputado por todos, e, especialmente, pelo presidente da República — a quem atacou logo, pois para a futura eleição o presidente seria outro. A sua ascensão só podia ser comparada à dos balões. Antenor esquecia o passado, amava a sua terra. Era o modelo da felicidade. Regulava admiravelmente.

Passaram-se assim anos. Todos os chefes políticos do País do Sol estavam na dificuldade de concordar no nome do novo senador, que fosse o expoente da norma, do bom senso. O nome de Antenor era cotado. Então Antenor passeava de automóvel pelas ruas centrais, para tomar pulso à opinião, quando os seus olhos deram na tabuleta do relojoeiro e lhe veio a memória.

— Bolas! E eu que esqueci! A minha cabeça está ali há tempo... Que acharia o relojoeiro? É capaz de tê-la vendido para o interior. Não posso ficar toda vida com uma cabeça de papelão!

Saltou. Entrou na casa do negociante. Era o mesmo que o servira.

— Há tempos deixei aqui uma cabeça.

— Não precisa dizer mais. Espero-o ansioso e admirado da sua ausência, desde que ia desmontar a sua cabeça.

— Ah! fez Antenor.

— Tem-se dado bem com a de papelão? — Assim...

— As cabeças de papelão não são más de todo. Fabricações por séries. Vendem-se muito.

— Mas a minha cabeça?

— Vou buscá-la.

Foi ao interior e trouxe um embrulho com respeitoso cuidado.

— Consertou-a?

— Não.

— Então, desarranjo grande?

O homem recuou.

— Senhor, na minha longa vida profissional jamais encontrei um aparelho igual, como perfeição, como acabamento, como precisão. Nenhuma cabeça regulará no mundo melhor do que a sua. É a placa sensível do tempo, das idéias, é o equilíbrio de todas as vibrações. O senhor não tem uma cabeça qualquer. Tem uma cabeça de exposição, uma cabeça de gênio, hors-concours.

Antenor ia entregar a cabeça de papelão. Mas conteve-se.

— Faça o obséquio de embrulhá-la.

— Não a coloca?

— Não.

— V.EX. faz bem. Quem possui uma cabeça assim não a usa todos os dias. Fatalmente dá na vista.

Mas Antenor era prudente, respeitador da harmonia social.

— Diga-me cá. Mesmo parada em casa, sem corda, numa redoma, talvez prejudique.

— Qual! V.EX. terá a primeira cabeça.

Antenor ficou seco.

— Pode ser que V., profissionalmente, tenha razão. Mas, para mim, a verdade é a dos outros, que sempre a julgaram desarranjada e não regulando bem. Cabeças e relógios querem-se conforme o clima e a moral de cada terra. Fique V. com ela. Eu continuo com a de papelão.

E, em vez de viver no País do Sol um rapaz chamado Antenor, que não conseguia ser nada tendo a cabeça mais admirável — um dos elementos mais ilustres do País do Sol foi Antenor, que conseguiu tudo com uma cabeça de papelão.

João do Rio foi o pseudônimo mais constante de João Paulo Emílio Coelho Barreto, escritor e jornalista carioca, que também usou como disfarce os nomes de Godofredo de Alencar, José Antônio José, Joe, Claude, etc., nada ou quase nada escrevendo e publicando sob o seu próprio nome. Foi redator de jornais importantes, como "O País" e "Gazeta de Notícias", fundando depois um diário que dirigiu até o dia de sua morte, "A Pátria". Contista romancista, autor teatral (condição em que exerceu a presidência da Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, tradutor de Oscar Wilde, foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito na vaga de Guimarães Passos. Entre outros livros deixou "Dentro da Noite", "A Mulher e os Espelhos", "Crônicas e Frases de Godofredo de Alencar", "A Alma Encantadora das Ruas", "Vida Vertiginosa", "Os Dias Passam", "As religiões no Rio" e "Rosário da Ilusão", que contém como primeiro conto a admirável sátira "O homem da cabeça de papelão". Nascido no Rio de Janeiro a 05 de agosto de 1881, faleceu repentinamente na mesma cidade a 23 de junho de 1921.

O texto acima foi extraído do livro "Antologia de Humorismo e Sátira", organizada por R. Magalhães Júnior, Editora Civilização Brasileira — Rio de Janeiro, 1957, pág. 196

segunda-feira, 28 de maio de 2012

Fragmentos - O soldadinho de Chumbo e a Bailarina.


"Todos os soldados se pareciam exatamente uns com os outros, exceto um, que não possuía uma perna, porque o tinham posto na fôrma em último lugar, e já não havia chumbo suficiente. Apesar deste defeito, os outros não se firmavam melhor em duas pernas do que ele na sua única.
Sobre a mesa em que os nossos soldados estavam formados havia outros brinquedos; mas o mais bonito de todos era um lindíssimo castelo de cartolina.Tudo  era encantador, mas não tanto como uma menina à porta, e  que era também de cartolina, com um lindo vestido de cassa, apertado por um cinto de fivela azul. A menina apresentava os braços arqueados, porque era dançarina, e uma  perninha  levantada a tal altura que o soldado de chumbo não a podia ver, e imaginou que, como ele, não teria senão uma perna.
"Ali está a mulher que me convém", pensou, "mas é uma grande fidalga. Mora num palácio, eu em uma caixa em companhia de vinte e quatro camaradas; e aqui  não haveria lugar para ela. No entanto, preciso conhecê-la."
Os únicos que estavam quietos eram osoldado de chumbo e a dançarinazinha - ela no bico do pé, ele numa perna só,a espreitá-la.
Deu meia-noite, e zás! a tampa da caixa de charutos levanta-se, e saiu um feiticeirozinho vestido de preto. Enciumado, ele viu como o soldadinho olhava embevecido para a dançarina.
- "Soldadinho de chumbo", disse o feiticeiro, "trata de olhar para outro lado."Mas o soldado fez que não ouvia.
No dia seguinte, quando os pequenos se levantaram, puseram o soldado de chumbo à janela; mas, de repente, ou por influência do feiticeiro ou por causado vento, caiu à rua de cabeça para baixo.
A chuva começou a cair em torrentes, e transformou-se em verdadeiro dilúvio.
Depois do aguaceiro passaram dois garotos.- "Olá!", disse um deles, "um soldadinho de chumbo por aqui! Vamos fazê-lo navegar."
Construíram um barco com um pedaço de jornal velho, meteram o soldado de chumbo dentro, e obrigaram-no a descer pelo regato abaixo. O barco lançou-se sobre a queda d'água, e o pobre soldado firmava-se o mais possível, e ninguém se atreveria a dizer que o tinha visto fechar os olhos com medo.
Nesse momento supremo, pensou na gentil dançarina, e pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia:- "Soldado, o perigo é enorme, a morte espera-te."O papel rasgou-se, e o soldado passou através dele. Nesse momento foi devorado por um grande peixe.
Após todo o ocorrido,o peixe foi pescado, exposto na feira, vendido, levado para a cozinha, e a cozinheira abriu-o com uma enorme faca. Pegou no soldado de chumbo com dois dedos, e levou-o para a sala, onde toda gente quis admirar esse homenzinho extraordinário, que tinha viajado na barriga de umpeixe.Entretanto, o soldado não se sentia orgulhoso. Colocaram-no em cima da mesa, e ali - tanto é verdade que acontecem coisas extraordinárias neste mundo - achou-se na mesma sala, de cuja janela havia caído. Reconheceu os pequenos e os brinquedos que estavam em cima da mesa, o lindo palácio, e a adorável dançarina sempre de perna no ar.
O soldadinho de chumbo ficou tão comovido, que de boa vontade teria derramado lágrimas de chumbo; mas isso não seria decente. Olhou para ela,ela olhou para ele, mas não disseram uma palavra ao outro.
De repente, um dos pequenos pegou nele e, sem motivo algum, atirou-o no fogo; eram obras do feiticeiro da caixa de charutos.O soldadinho de chumbo lá estava perfilado, iluminado por um clarão sinistro,e sofrendo um calor terrível. Todas as cores lhe tinham desaparecido, sem que se pudesse dizer se era por causa de suas viagens, ou por causa de seus desgostos. Continuava a olhar para a dançarina, que também olhava para ele.Sentia-se derreter, mas, sempre corajoso, conservava a espingarda ao ombro na atitude marcial.De repente, abriu-se uma porta e um golpe de vento arremessou a dançarina ao fogo, para junto do soldado, que apareceu no meio das labaredas. O soldadinho de chumbo não era mais que uma pequena massa informe. 
No dia seguinte, quando a criada veio limpar a lareira, ficou espantada ao encontrar um pequeno coração de chumbo com uma fivelinha azul."

 Hans Christian Andersen










 *Pequenas Análises ...
Uma narrativa sobre um grande amor entre o Soldadinho de Chumbo e a Bailarina.
Além do amor, trata-se de um conto sobre ética,diferenças culturais,identidade e aceitação das diferenças.
Seus personagens são brinquedos,representando a impotência das crianças incompreendidas e cheias de desejos que ninguém escuta.
Simbolicamente o chumbo representa o peso da individualidade incorruptível.Para a transmutação do chumbo em ouro,os alquimistas buscavam metaforicamente desprender-se das limitações individuais,para atingir os valores coletivos e universais.
 O soldadinho ao ser retirado da barriga do peixe, seria como o renascimento do personagem.
A morte do soldadinho e da bailarina seria como uma transformação, pois somente nesse momento que os dois conseguem ficar unidos.Da união surge um coração significando o amor  infinito.


quinta-feira, 24 de maio de 2012

Na hora de partir.

Tenho apenas algumas horas.
Depois disso eu vou partir.
Deixei minhas malas dentro do carro - só pra garantir.
O resto eu levo depois.

Meu coração fica.

Vamos aproveitar as poucas horas que nos restam.
Você mostra a palma da sua mão,
Eu mostro o que carrego dentro dos bolsos.
Por fim nos tocaremos.

Os olhos ficam.

Eu direi o que me falta dizer.
Você diz o que te deixei faltar.
Não precisaremos de muitas palavras,fique tranquilo.
Gastamos todas as outras horas com elas,lembra?
Apenas olhe o que restou.

A boca fica.

Agora abra essa janela,por favor.
E me abrace porque sinto frio e calor ao mesmo tempo - pela última vez.
Me olhe e admire o que ainda ficou.

Meu relógio.Fica.

E agora eu preciso apanhar minhas malas naquele carro.
Decidi ir caminhando.
O peso da bagagem não há de pesar mais do que sobrou em mim -será um alento,uma distração.
E vou,sim, eu vou andando.
Arriscarei alguns passos sozinha.

Você pode ficar com o meu passado .

Fica se quiser.

Porque eu vou.



segunda-feira, 21 de maio de 2012

Tributo a sua ausência.

Já se passaram cinco anos e eu mal tive notícias suas.
Passei o olho em algumas fotografias - houveram outros amores, eu sei.
Percebi que seu gosto mudou e que suas idéias já são outras.

Mas o amor...demora.

Sei que já são cinco anos.
Mas eu ainda me lembro de todas as suas palavras.
Inclusive, escrevi suas palavras no meu caderno e as uso pra falar sobre amor e outras dores.
Gravei o timbre da sua voz e o procurei em outras bocas.
Aqueles sons ainda me provocam qualquer coisa - e ainda me pego repetindo seus versos (em uma tentativa frustrada de dar aquela mesma entonação) .

Mas jamais haverá outras bocas.
E não adianta procurá-lo em outros timbres.

O nosso reencontro ontem me fez constatar o quanto você sempre será insubstituível.
Ouvi e repeti todas as suas palavras como se fossem preces.
Repetia alto,na esperança que você vibrasse com a minha presença - vibrasse na mesma frequência.

Reconheci no seu tom a dor em mim guardada.
Reconheci nos seus versos os meus desejos ainda latentes
Percebi nos meus gestos as mesmas respostas.

O amor demora porque ainda se ama - mesmo em face a sua ausência.

Ainda alimento secretas esperanças - sobre aqueles nossos antigos encontros periódicos...
Iria onde quer que fosse só pra escutar seus devaneios.
Adoraria gravar no meu caderno seus novos versos (seus novos amores também seriam meus).
E eu levaria esse meu amor demorado até as últimas consequências.

Porque eu juro que tentei substituí-lo.
Briguei contra as minhas secretas esperanças -desfiz delas temporariamente.
E repeti outros versos  e idéias opostas às suas - na eterna tentativa de arranjar alguém pra me consolar.

Mas...veja bem meu bem.
Até hoje, o único que ocupou o seu lugar...
Foi a saudade.

E a solidão deixa o coração nesse leva e trás...

* Para Los Hermanos, com amor.