"Todos os
soldados se pareciam exatamente uns com
os outros, exceto um, que não possuía uma perna, porque o tinham posto na
fôrma em último lugar, e já não havia chumbo suficiente. Apesar deste defeito, os outros não se firmavam melhor em duas pernas do que ele na
sua única.
Sobre a mesa em que os nossos
soldados estavam formados havia outros brinquedos; mas o mais
bonito de todos era um lindíssimo
castelo de cartolina.Tudo era encantador, mas não tanto como uma menina à
porta, e que era também de cartolina, com um lindo vestido de
cassa, apertado por um cinto de
fivela azul. A menina apresentava os braços arqueados, porque era dançarina, e uma perninha
levantada a tal altura que o soldado de chumbo não a podia ver, e
imaginou que, como ele, não teria
senão uma perna.
"Ali está a mulher que me convém", pensou, "mas é uma
grande fidalga. Mora num palácio, eu em
uma caixa em companhia de vinte e quatro camaradas; e aqui
não haveria lugar para ela. No entanto,
preciso conhecê-la."
Os únicos que estavam quietos eram osoldado de chumbo
e a dançarinazinha - ela no bico do pé, ele numa perna só,a espreitá-la.
Deu meia-noite, e zás! a tampa da
caixa de charutos levanta-se, e saiu um feiticeirozinho
vestido de preto. Enciumado, ele viu
como o soldadinho olhava embevecido para a dançarina.
- "Soldadinho de chumbo", disse o
feiticeiro, "trata de olhar
para outro lado."Mas o soldado fez que não
ouvia.
No dia seguinte, quando os pequenos se
levantaram, puseram o soldado de chumbo à janela; mas, de repente, ou por influência do
feiticeiro ou por causado vento, caiu à rua de cabeça para
baixo.
A chuva começou a cair em torrentes, e transformou-se em verdadeiro dilúvio.
Depois do aguaceiro passaram dois garotos.- "Olá!", disse um deles, "um soldadinho de
chumbo por aqui! Vamos fazê-lo navegar."
Construíram um barco com um pedaço de
jornal velho, meteram o soldado de chumbo dentro, e obrigaram-no a descer pelo
regato abaixo. O barco lançou-se sobre a queda d'água, e o pobre soldado firmava-se
o mais possível, e ninguém se atreveria a dizer que o tinha visto fechar os
olhos com medo.
Nesse momento supremo, pensou na
gentil dançarina, e pareceu-lhe ouvir uma voz que dizia:- "Soldado, o
perigo é enorme, a morte espera-te."O papel rasgou-se, e o soldado passou
através dele. Nesse momento foi devorado por um grande peixe.
Após todo o ocorrido,o peixe foi pescado, exposto na feira,
vendido, levado para a cozinha, e a cozinheira abriu-o com uma enorme
faca. Pegou no soldado de chumbo com dois dedos, e levou-o para a sala, onde
toda gente quis admirar esse homenzinho extraordinário, que tinha viajado
na barriga de umpeixe.Entretanto, o soldado não se sentia orgulhoso.
Colocaram-no em cima da mesa, e ali - tanto é verdade que acontecem coisas
extraordinárias neste mundo - achou-se na mesma sala, de cuja
janela havia caído. Reconheceu os pequenos e os brinquedos que estavam em
cima da mesa, o lindo palácio, e a adorável dançarina sempre de perna no ar.
O soldadinho de chumbo ficou tão
comovido, que de boa vontade teria derramado lágrimas de chumbo; mas isso não
seria decente. Olhou para ela,ela olhou para ele, mas não disseram uma palavra
ao outro.
De repente, um dos pequenos pegou nele
e, sem motivo algum, atirou-o no fogo; eram obras do feiticeiro da caixa de
charutos.O soldadinho de chumbo lá estava perfilado, iluminado por um
clarão sinistro,e sofrendo um calor terrível. Todas as cores lhe tinham
desaparecido, sem que se pudesse dizer se era por causa de suas viagens, ou por
causa de seus desgostos. Continuava a olhar para a dançarina, que também olhava
para ele.Sentia-se derreter, mas, sempre corajoso, conservava a espingarda ao
ombro na atitude marcial.De repente, abriu-se uma porta e um golpe de vento
arremessou a dançarina ao fogo, para junto do soldado, que apareceu no meio das labaredas. O soldadinho
de chumbo não era mais que uma pequena massa informe.
No dia
seguinte, quando a criada veio limpar a lareira, ficou espantada ao encontrar
um pequeno coração de chumbo com uma fivelinha azul."
Hans Christian Andersen
*Pequenas Análises ...
Uma narrativa sobre um grande amor
entre o Soldadinho de Chumbo e a Bailarina.
Além do amor, trata-se de um conto
sobre ética,diferenças culturais,identidade e aceitação das diferenças.
Seus personagens são brinquedos,representando
a impotência das crianças incompreendidas e cheias de desejos que ninguém
escuta.
Simbolicamente o chumbo representa o peso da individualidade incorruptível.Para a transmutação do chumbo em ouro,os alquimistas buscavam metaforicamente desprender-se das limitações individuais,para atingir os valores coletivos e universais.
O soldadinho ao ser retirado da
barriga do peixe, seria como o renascimento do personagem.
A morte do soldadinho e da bailarina
seria como uma transformação, pois somente nesse momento que os dois conseguem
ficar unidos.Da união surge um coração significando o amor infinito.